Na gaveta



Eu era menino, idade meio perdida nas dobras da memória, quando abri uma gaveta e encontrei aquele volume sem capa, todo escurecido pelo tempo. Minha casa era lugar de poucos livros. Gibis e pulp-fiction, com suas histórias de faroeste e de detetives fabulosos, como a Brigite Monfort, havia por ali. Ah, e as extintas fotonovelas também: Grande Hotel, Contigo, e a colorida Sétimo Céu. Isso havia. Meu pai e minha irmã Maura adoravam estas histórias sempre tão iguais. Livros não. Daí minha enorme surpresa ao me deparar com aquele presente insólito. Sem capa, grosso, envelhecido, mas um livro. E estava ali, bem ao alcance de minhas mãos.

Mergulhei nele como quem se atira num lago sem saber o que as profundezas escondem. Mergulhei nele como sobrevivente em deserto ao se deparar com oásis. Mergulhei com o anseio de ter entre as mãos um livro meu. E já não me interessavam os motivos que o jogaram naquela gaveta ou o autor de tal façanha. Se o livro estava ali, se ninguém o reclamara antes, ele, a partir daquele momento, se tornava meu. Só meu. E foi. Na página de rosto, o título: Ben-hur, de Lewis Wallace. Não me recordo os detalhes da história. Por vezes uma ou outra cena me vêm à lembrança, não sei se guardada daqueles dias adolescentes ou se marcadas pelo filme, muitos anos depois assistido na televisão. Não sei, e talvez nem importe. O que ficou mais forte, mágico até, foi o momento de segurar aquele velho livro entre minhas mãos, o mergulho em suas páginas e a sensação inigualável de ele ser meu. Só meu.

Depois, veio a necessidade de proteção daquele objeto quase sagrado. Se não tinha capa, eu faria uma para ele. E fiz. Capa que nada tinha a ver com a história. Fiz uma colagem com várias motocicletas (quem sabe uma atualização daquelas bigas que apareciam no livro em suas corridas de vida ou morte?) e montei-a como capa para o meu livro. Quantas vezes o li? Não lembro. Ele era o meu livro e, portanto, cada novo mergulho era redescoberta da emoção de tê-lo. Era sofrimento junto com o protagonista, era a felicidade da vitória final.

Mas o tempo passa. Ele sempre passa.

Vai-se crescendo e os olhos vão descobrindo as bibliotecas, as livrarias, os sebos. O pouco de dinheiro sobrado vai em livros se tornando. Eu mesmo, hoje, senhor de uma biblioteca em que o meu primeiro livro não se encontra. Perdi-o, talvez envergonhado pela capa tão díspar do conteúdo. Perdi-o, talvez pela feiúra de suas páginas amarelas, frágeis, eu que naquela época não tinha a sabedoria para entender o valor de um livro antigo, em cujas páginas tantas vidas penetraram. O livro mesmo sendo essa soma de sentimentos. Perdi-o, talvez por outros e tantos motivos.

Perdi, no entanto, o objeto. A emoção de tê-lo encontrado, de tê-lo lido, ah não, essa não perderei jamais. Essa permanece tatuada na pele, no coração, no sangue, na memória. Para sempre.

Livros são assim até hoje. Quero-os por perto. Quero-os para toque, para carinho em pele de papel. Quero-os como convite, como devoramento, como objeto vivo em sua capacidade de posse e de entrega.

E esse tanto desejo de leitura, de mergulho em universos sequer imaginados, foi fazendo nascer outro (e maior) desejo: o da escrita. Assim me fui, e me vou, fazendo palavra. O verbo, quer lido, quer inventado, tem a capacidade de forjar mundos, de forjar mentes. Assim, emotivo de tristeza, por vezes, quando ouso aquela velha ladainha de que livro é caro e que, por isso, as pessoas lêem pouco. Há objetos mais caros que livros. Bem mais caros, cujo retorno é pífio, quando comparados ao bem que um livro propicia. Na verdade, livros são caros para quem não os necessita. Apenas para essas pessoas. Por isso, ando meio cansado de ver na boca de pessoas inteligentes este tipo de desculpa para justificar que os brasileiros lêem pouco, ou quase nada. Exemplos, como o a capital brasileira da leitura, Passo Fundo, que conseguiu destacar-se como a cidade em que há o maior número de leitores,devem ser seguidos. E, até onde sei, lá, os livros custam o mesmo que em qualquer outra livraria. Ou não?

Assim, sonho.

Quem dera toda e qualquer pessoa possa, um dia, abrir uma gaveta e, entre tantos guardados já esquecidos, descobrir a surpresa de algumas páginas de luz que se apresentem como água oferecida a um sedento. Este, embora possa ser desconhecedor de sua sede, ao pôr os olhos sobre o líquido vivo, o beba. Uma vez bebido, jamais haverá secura novamente.

Mas, apenas, mais e mais necessidade.

Talvez, por isso eu escreva: desejo de ser fonte também.



Feira de livros: pra que mesmo?




Pergunta que anda sendo inquietação é se feiras de livros formam leitores. Podem, mas não bastam, creio. As feiras atraem, muitas vezes, não pelos livros ou pela possibilidade de encontro com antigos afetos literários ou de descoberta de novas histórias e de novos autores. Chamam através de outros convites. E estes, várias vezes, nada têm a ver com leitura: apresentações escolares (de dança, de coreografias, de teatro...), banda municipal, show de algum grupo de talentosos jovens pagodeiros, funkeiros, e outras, e tantas, atrações similares. Penso, penso e penso. No entanto, confesso que minha limitação intelectual não consegue, na maioria das vezes, estabelecer nexos entre tais apresentações e a formação de leitores.

Dia destes, abri o jornal e li matéria que convidava para a feira do livro de uma cidade da Grande Porto Alegre. Falava um pouquinho sobre o patrono, e depois eram listadas as atrações. Todas apresentações musicais. Dos mais variados estilos. Nada de escritores, nada de sessões de autógrafos, nada de mesas-redondas ou de seminários envolvendo a leitura, nada de contações de histórias, nada de livros. Claro que acredito (quero acreditar, pelo menos) que tais atividades existiam. Todavia, a pessoa que elaborou o release da feira talvez tenha julgado que estes nada não se constituíam fortes atrativos para o público. Os shows, sim.

Ora, se tal pensamento de fato existe, porque, então, fazer uma feira do livro? Quantos autores revelam — eu mesmo — que vão a feiras e enfrentam sessões de autógrafos esvaziadas? Quantos? Certa vez, fui a uma feira. Era final de uma tarde de domingo. Espaço lotado de adolescentes. A organizadora chegou até mim e disse: “Viu como a feira está cheia? É não é por causa da banda Xis, não.” Que mais pude eu fazer, senão concordar. Todavia, olhando para as mãos daquele amontoado de gente, não consegui detectar uma sacolinha sequer com um livro dentro. Nada. Ora, se não era pela banda, e tampouco pelos livros, que motivo atraía aqueles seres para o meio das bancas sem público numa tarde de fim-de-semana? Até hoje, busco a resposta.

E a vida é isso mesmo: uma constante interrogação. Todavia, para algumas questões, creio, já temos respostas. Para outras, ainda estamos atrás. O que sei é que atrair as pessoas para a feira, através de produtos alienígenas à leitura não é caminho. O que sei é que as feiras de livros devem ser culminância — quer em cidades, quer em escolas — de um projeto de leitura anterior. Projeto que promova, de fato, o contato com o livro, que contribua com a formação de leitores, que seja espaço de discussão qualificada sobre os textos lidos, que abra um leque de interpretações, que faça do leitor alguém atuante na construção de significados, que possibilite o surgimento de bibliotecas particulares, a fim de que o leitor sempre que queira possa retornar ao livro. Projetos com tais objetivos são vitais. E necessários. Há, felizmente, gente que pensa como eu. Projetos como o Adote um escritor (Porto Alegre), Livro lido (Cachoeirinha), Passaporte da Leitura (Caxias), Vento de Letras (Osório), entre outros, buscam a formação dos leitores, que, quando vão à feira, já leram, já debateram os livros dos autores com os quais terão contato. A Feira, nessa perspectiva, torna-se a festa do livro. Mas festa para quem foi convidado, aceitou o convite e, para isto, preparou-se com antecedência.