Palavras importantes ou breve crônica natalina



Nascer no dia 24 de dezembro sempre provocou em minha infância certa atmosfera de tristeza, basta olhar para o Caio menino que me observa com sua face preta-e-branca naquela tradicional foto escolar para perceber esta verdade. Essa sensação, claro, apenas minha, o aniversariante. Para os demais, tal data parece sempre motivo de surpresa e de alegria. Um presente. Imagina nascer na véspera do Natal!

Minha mãe até brincava com tamanha coincidência: dizia que eu era o presente mais lindo que havia recebido do Noel. Eu sempre tive lá minhas dúvidas. Às vezes, duvidava da qualidade e da beleza dos presentes recebidos anteriormente que a faziam dizer tais palavras. E ficava com pena de minha mãe. Mas, sei lá, talvez em sua humilde sabedoria materna, ele quisesse me proteger da sina natalina. Sina de não-festa. Afinal, poucos eram os convidados que aceitavam o convite para festejar meu aniversário. A maioria dos convivas preocupados com viagens, com compra de presentes, com os costumeiros preparativos para a noite.

Além da festa esvaziada, havia também a economia com os presentes. Eu sempre ganhava apenas um: valia pelo aniversário e pelo Natal. Quer coisa mais deprimente para uma criança? A possibilidade de dois presentes transformada em um pacote apenas.

Talvez por isso, ainda hoje, mesmo agora ganhando mais de um presente, a comemoração de meus anos seja mais intimista. Prefiro assim. As festas nunca me agradaram, poucas na verdade foram tentativa. Mas nunca na data oficial. Festejar no dia 24 jamais. Carta fora do baralho. Se desejo de festejos havia, este deveria ocorrer antes: 22 ou 23. Tal impossibilidade de aniversariar, de fato, no dia em que nasci fez com que meu dia seja pouco celebrativo. Há algo maior, sempre, para se festejar no meu dia. A sombra do nascimento do menino divino sempre nubla o meu nascer. Algo, aliás, que vem sendo esquecido. Celebra-se o natal e esquece-se do aniversariante. Ele também, com certeza, entristecendo naquele que deveria ser seu dia de festa.

O Natal perde seu sentido de encontro (seja qual for a fé que tenhamos e que anime nosso existir) para a luta renhida, cujo cenário são os shoppings lotados de gentes que nem se olham e cujas armas são mãos abarrotadas de sacolas e de pacotes. O próprio ato de presentear, símbolo da alegria pelo nascituro, importa mais pelo valor monetário e pela quantidade. Perdem-se valores, esvaziam-se os rituais e, feito autômatos, desperdiçamos chances de renascermos como gente.

Gente é o que precisamos ser. Sempre. A qualquer dia.
Verdade maior, obscurecida pelo materialismo, pelas relações estéreis, pelo esvaziamento de palavras importantes como fé, amor, fraternidade, afeto, amizade.

Leitura: prazer e necessidade (breve crônica sobre a minha relação com a cidade de Morro Reuter



Em 1998, há dez anos portanto, cheguei pela primeira vez a Morro Reuter. Lembro que foi encantamento à primeira vista. As ruas, as casas, a praça central e o carinho de muitos leitores fizeram nascer a sintonia. Há coisas que não se explicam bem, a gente sente e pronto. E, naquele dia, senti que a pequena cidade que me acolhia, escritor iniciante, ainda estaria presente de forma mais significativa ainda em minha vida literária.

Gosto de estar em Morro. Gosto de perceber a atmosfera de leitura que envolve o município. Gosto de ser participante desta história de construção de cidadania via literatura. Afinal, acredito que a leitura literária transforma. E para melhor. Aquele que lê sempre será pessoa de maior grandeza. Aquele que propicia que outros leiam, que leva o livro às mais tenras ou às mais cansadas mãos também é grande. Assim, sempre é bom lembrar as palavras do poeta condoreiro: Bendito o que semeia livros, livros à mão-cheia, e faz o povo pensar.

Em Morro Reuter, percebe-se que a leitura não á apenas teoria, “coisa da boca pra fora”. Não, livro é necessidade que se construiu e solidificou-se graças ao empenho de muitos e, espero, de cada vez mais gente. Há, percebo, a clareza de que ler é condição essencial para a cidadania.
Quando penso a leitura e os mitos que a envolvem, penso também que a literatura ainda carece de olhares diferenciados sobre algumas “verdades” que se impõem e que, muitas vezes, não recebem o devido e merecido questionamento. Por exemplo, fala-se muito sobre o prazer de ler. Há sempre alguém a propagar que a leitura não pode ser obrigatória, que deve ser uma opção prazerosa e livre. Discordo. A leitura é libertária, sim, mas — até a pessoa dar-se conta de sua necessidade — políticas públicas, projetos escolares, adultos multiplicadores de leitura fazem-se necessários. Ora, se acreditamos que algo é bom, temos a obrigação de divulgá-lo, de estimulá-lo, de propiciar que mais e mais seres possam se encantar e usufruir deste bem. Qual a mãe consciente e zelosa que permitirá que seu filho faça apenas o que tem vontade, que coma o que quiser, que durma a hora que julgar mais adequada? Uma mãe atenta impõe limites, indica caminhos, diz sim e não, sempre que necessário. Ser mãe é ter responsabilidade com o adulto de amanhã. Pois em relação à leitura penso de forma semelhante. Se queremos uma comunidade leitora, devemos pensá-la, projetá-la, estabelecendo critérios e políticas para tal. Assim, a leitura não se limita ao prazer, mas à necessidade.

Duas palavras-chave, hoje, para se pensar a leitura: prazer e necessidade. Ao se falar em prazer, geralmente se pensa em entretenimento, em passatempo. Leitura é mais que isso, tem que ser muito mais que este tipo de prazer, que, aliás, é facilmente substituído. Quando penso no prazer da leitura, penso num prazer estético: deliciar-se com o texto, descobrir sua arquitetura, envolver-se com seu ritmo, com sua musicalidade, perceber e desvendar suas metáforas e, assim, atingir um estado de deleite com o próprio texto. Nele e para ele. Este é o prazer de que falo. Este apenas a literatura pode promover. Tal deleite, no entanto, não nasce com o indivíduo, não aparece naturalmente (pelo menos na maioria dos casos), precisa de alguém que oriente, que “ensine” os leitores, que os qualifique no desejo de mais e mais descobertas estéticas nos textos que lê, que lhes aponte: “Olha esse livro. Ele é muito legal!” Para tal, a necessidade de orientadores conscientes de seu papel como formadores e qualificadores de novos e de mais leitores se faz urgência.

Mas e a tal da necessidade? Pois bem, hoje se fala muito também (e isto acaba sendo motivo limitador para a formação de leitores) que o livro é caro. É caro, penso, para quem ainda não fez dele uma necessidade, algo vital. Retomo aqui a imagem da mãe zelosa (ou do pai, ou de qualquer adulto cuidador). Qual deles, se uma criança amada conseguir provar que necessita de algo, não moverá mundo e fundos para saciar tal necessidade, mesmo que não possua recursos imediatos para tal? Creio que todos. Logo, se o livro é caro e muitos relutam em disponibilizá-lo às crianças, isso se dá em virtude de não perceberem na leitura uma necessidade. Livro precisa ser necessário, precisa ser elemento vital, essencial. Assim, falta, por vezes, aos educadores tal convicção, tal prática: tornar seus alunos necessitados de livros. Todavia, só contaminamos os outros com tal necessidade quando nós também nos tornamos carentes de leitura. E, nesse caso, preço deixa de ser limitador.

Desta forma, duas posturas me parecem fundamentais para todo aquele que deseja formar leitores: auxiliá-los na descoberta do verdadeiro prazer literário (aquele que não é mero passatempo) e torná-los seres necessitados de livros, de leitura de qualidade. Assim, com certeza, estaremos formando cidadãos mais críticos e mais sensíveis. Seres, aliás, de que a sociedade em que vivemos precisa. E muito.

Morro Reuter, creio, tem como norte tal sociedade. Sua tradicional feira do livro, seu seminário de leitura, suas bibliotecas “apadrinhadas”, seus saraus, seus luaus e tantas outras atividades que ocorrem, com certeza, no interior das salas de aula nas diferentes escolas do município — todas representadas pelo singular obelisco — são passos sólidos na formação de gente que crê que ler faz, e sempre fará, diferença.

Dez anos pode ser muito, pode também ser quase nada, sobretudo quando a gente se sente parte de um projeto maior. Assim, se minha primeira entrada em Morro foi tímida, completo esta década curtindo duas homenagens que ficarão marcadas em minha história de escritor. 2008 é ano ímpar. Ano em que sou o patrono da feira do livro de Morro Reuter e em que a escola Dom Bosco dá a sua biblioteca o meu nome: Biblioteca Caio Riter. Que mais um autor pode desejar?


Caio Riter é professor e escritor. Doutor em Literatura Brasileira e patrono da feira do livro de Morro Reuter.

Na gaveta



Eu era menino, idade meio perdida nas dobras da memória, quando abri uma gaveta e encontrei aquele volume sem capa, todo escurecido pelo tempo. Minha casa era lugar de poucos livros. Gibis e pulp-fiction, com suas histórias de faroeste e de detetives fabulosos, como a Brigite Monfort, havia por ali. Ah, e as extintas fotonovelas também: Grande Hotel, Contigo, e a colorida Sétimo Céu. Isso havia. Meu pai e minha irmã Maura adoravam estas histórias sempre tão iguais. Livros não. Daí minha enorme surpresa ao me deparar com aquele presente insólito. Sem capa, grosso, envelhecido, mas um livro. E estava ali, bem ao alcance de minhas mãos.

Mergulhei nele como quem se atira num lago sem saber o que as profundezas escondem. Mergulhei nele como sobrevivente em deserto ao se deparar com oásis. Mergulhei com o anseio de ter entre as mãos um livro meu. E já não me interessavam os motivos que o jogaram naquela gaveta ou o autor de tal façanha. Se o livro estava ali, se ninguém o reclamara antes, ele, a partir daquele momento, se tornava meu. Só meu. E foi. Na página de rosto, o título: Ben-hur, de Lewis Wallace. Não me recordo os detalhes da história. Por vezes uma ou outra cena me vêm à lembrança, não sei se guardada daqueles dias adolescentes ou se marcadas pelo filme, muitos anos depois assistido na televisão. Não sei, e talvez nem importe. O que ficou mais forte, mágico até, foi o momento de segurar aquele velho livro entre minhas mãos, o mergulho em suas páginas e a sensação inigualável de ele ser meu. Só meu.

Depois, veio a necessidade de proteção daquele objeto quase sagrado. Se não tinha capa, eu faria uma para ele. E fiz. Capa que nada tinha a ver com a história. Fiz uma colagem com várias motocicletas (quem sabe uma atualização daquelas bigas que apareciam no livro em suas corridas de vida ou morte?) e montei-a como capa para o meu livro. Quantas vezes o li? Não lembro. Ele era o meu livro e, portanto, cada novo mergulho era redescoberta da emoção de tê-lo. Era sofrimento junto com o protagonista, era a felicidade da vitória final.

Mas o tempo passa. Ele sempre passa.

Vai-se crescendo e os olhos vão descobrindo as bibliotecas, as livrarias, os sebos. O pouco de dinheiro sobrado vai em livros se tornando. Eu mesmo, hoje, senhor de uma biblioteca em que o meu primeiro livro não se encontra. Perdi-o, talvez envergonhado pela capa tão díspar do conteúdo. Perdi-o, talvez pela feiúra de suas páginas amarelas, frágeis, eu que naquela época não tinha a sabedoria para entender o valor de um livro antigo, em cujas páginas tantas vidas penetraram. O livro mesmo sendo essa soma de sentimentos. Perdi-o, talvez por outros e tantos motivos.

Perdi, no entanto, o objeto. A emoção de tê-lo encontrado, de tê-lo lido, ah não, essa não perderei jamais. Essa permanece tatuada na pele, no coração, no sangue, na memória. Para sempre.

Livros são assim até hoje. Quero-os por perto. Quero-os para toque, para carinho em pele de papel. Quero-os como convite, como devoramento, como objeto vivo em sua capacidade de posse e de entrega.

E esse tanto desejo de leitura, de mergulho em universos sequer imaginados, foi fazendo nascer outro (e maior) desejo: o da escrita. Assim me fui, e me vou, fazendo palavra. O verbo, quer lido, quer inventado, tem a capacidade de forjar mundos, de forjar mentes. Assim, emotivo de tristeza, por vezes, quando ouso aquela velha ladainha de que livro é caro e que, por isso, as pessoas lêem pouco. Há objetos mais caros que livros. Bem mais caros, cujo retorno é pífio, quando comparados ao bem que um livro propicia. Na verdade, livros são caros para quem não os necessita. Apenas para essas pessoas. Por isso, ando meio cansado de ver na boca de pessoas inteligentes este tipo de desculpa para justificar que os brasileiros lêem pouco, ou quase nada. Exemplos, como o a capital brasileira da leitura, Passo Fundo, que conseguiu destacar-se como a cidade em que há o maior número de leitores,devem ser seguidos. E, até onde sei, lá, os livros custam o mesmo que em qualquer outra livraria. Ou não?

Assim, sonho.

Quem dera toda e qualquer pessoa possa, um dia, abrir uma gaveta e, entre tantos guardados já esquecidos, descobrir a surpresa de algumas páginas de luz que se apresentem como água oferecida a um sedento. Este, embora possa ser desconhecedor de sua sede, ao pôr os olhos sobre o líquido vivo, o beba. Uma vez bebido, jamais haverá secura novamente.

Mas, apenas, mais e mais necessidade.

Talvez, por isso eu escreva: desejo de ser fonte também.



Feira de livros: pra que mesmo?




Pergunta que anda sendo inquietação é se feiras de livros formam leitores. Podem, mas não bastam, creio. As feiras atraem, muitas vezes, não pelos livros ou pela possibilidade de encontro com antigos afetos literários ou de descoberta de novas histórias e de novos autores. Chamam através de outros convites. E estes, várias vezes, nada têm a ver com leitura: apresentações escolares (de dança, de coreografias, de teatro...), banda municipal, show de algum grupo de talentosos jovens pagodeiros, funkeiros, e outras, e tantas, atrações similares. Penso, penso e penso. No entanto, confesso que minha limitação intelectual não consegue, na maioria das vezes, estabelecer nexos entre tais apresentações e a formação de leitores.

Dia destes, abri o jornal e li matéria que convidava para a feira do livro de uma cidade da Grande Porto Alegre. Falava um pouquinho sobre o patrono, e depois eram listadas as atrações. Todas apresentações musicais. Dos mais variados estilos. Nada de escritores, nada de sessões de autógrafos, nada de mesas-redondas ou de seminários envolvendo a leitura, nada de contações de histórias, nada de livros. Claro que acredito (quero acreditar, pelo menos) que tais atividades existiam. Todavia, a pessoa que elaborou o release da feira talvez tenha julgado que estes nada não se constituíam fortes atrativos para o público. Os shows, sim.

Ora, se tal pensamento de fato existe, porque, então, fazer uma feira do livro? Quantos autores revelam — eu mesmo — que vão a feiras e enfrentam sessões de autógrafos esvaziadas? Quantos? Certa vez, fui a uma feira. Era final de uma tarde de domingo. Espaço lotado de adolescentes. A organizadora chegou até mim e disse: “Viu como a feira está cheia? É não é por causa da banda Xis, não.” Que mais pude eu fazer, senão concordar. Todavia, olhando para as mãos daquele amontoado de gente, não consegui detectar uma sacolinha sequer com um livro dentro. Nada. Ora, se não era pela banda, e tampouco pelos livros, que motivo atraía aqueles seres para o meio das bancas sem público numa tarde de fim-de-semana? Até hoje, busco a resposta.

E a vida é isso mesmo: uma constante interrogação. Todavia, para algumas questões, creio, já temos respostas. Para outras, ainda estamos atrás. O que sei é que atrair as pessoas para a feira, através de produtos alienígenas à leitura não é caminho. O que sei é que as feiras de livros devem ser culminância — quer em cidades, quer em escolas — de um projeto de leitura anterior. Projeto que promova, de fato, o contato com o livro, que contribua com a formação de leitores, que seja espaço de discussão qualificada sobre os textos lidos, que abra um leque de interpretações, que faça do leitor alguém atuante na construção de significados, que possibilite o surgimento de bibliotecas particulares, a fim de que o leitor sempre que queira possa retornar ao livro. Projetos com tais objetivos são vitais. E necessários. Há, felizmente, gente que pensa como eu. Projetos como o Adote um escritor (Porto Alegre), Livro lido (Cachoeirinha), Passaporte da Leitura (Caxias), Vento de Letras (Osório), entre outros, buscam a formação dos leitores, que, quando vão à feira, já leram, já debateram os livros dos autores com os quais terão contato. A Feira, nessa perspectiva, torna-se a festa do livro. Mas festa para quem foi convidado, aceitou o convite e, para isto, preparou-se com antecedência.